Congresso 2015

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quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Aprender a viver. A nossa condição - liberdade e antinomia. [Clóvis de Barros Filho]


Liberdade e antinomia

Depois de ler este artigo, não se prive do prazer de degustar a primeira página do texto de Kant, intitulado Fundamentos da Metafísica dos Costumes. Este é o momento. Lágrimas rolam. De encantamento. Porque as linhas que seguem facilitam o acesso. O autor não demora para dar o tom. Mas, ao mesmo tempo, é implacável. Não perdoará nem um segundo de distração. Apresenta-se como herdeiro da antropologia de Rousseau. E em ruptura com o pensamento grego. Porque o que pode ser bom, virtuoso e digno não são nossos talentos naturais, nossas aptidões. Discernir, desenhar, cantar ou correr nada disso é importante para definir a virtude ou a dignidade de uma pessoa. 

Ou seja, não é por ser dotado de inegável talento, proporcionado pela sua natureza, que você será moralmente excelente. O que realmente importa é o uso que fará deste talento. E este uso, é você quem decide. É uma questão de liberdade. Liberdade para decidir o que fazer com as aptidões que são as nossas. As de cada um. 

Ainda estamos nas primeiras páginas dos Fundamentos. Se minha memória não me trair o que ele diz é mais ou menos isso: de tudo que pudermos conceber no mundo, e mesmo fora dele, só há uma coisa que possa ser tida, sem restrições, como absolutamente boa: a boa vontade. Assim, a inteligência, a faculdade de comparar, de discernir o particular podem ser faculdades apreciáveis. Mas não são qualidades morais. E por que não? Porque todas estas faculdades, e todos os talentos naturais em geral, podem ser colocados tanto a serviço do bem quanto do mal. Nunca são, por eles mesmos, bons ou maus. 

Assim, podemos usar a inteligência para curar, alegrar, ensinar saberes que trarão alegrias e muito mais. Em contrapartida, também podemos usar as mesmas faculdades do espírito para enganar, entristecer, iludir, mentir e também muito mais. Perceba que nenhuma destas faculdades pode ser boa em si mesma, porque tudo dependerá do uso que delas fizermos. Da vontade. Da livre deliberação sobre um fim em detrimento de outros. Que poderá ser boa, uma boa vontade, ou não. 

Assim, a beleza do corpo de um homem ou de uma mulher pode ser usada para encantar quem o contemple. Beleza para a alegria do outro. Como para ensejar o desejo. Estimular na distância a aproximação. Mas também para obter alguma vantagem ou privilégio. Como moeda de troca. Beleza que se converte numa forma de capital. Um capital estético. Beleza da jovem aluna de graduação, tortura para o professor em dias de verão. Quando a aproximação é impossível.

Só a boa vontade é tudo de bom, diria Kant. Intrinsecamente bom. Todo o resto está sob suspeita. Dependerá sempre do que fizermos com ele. Está na boa vontade toda a virtude e dignidade humana. Neste humanismo moderno de Kant, não faria nenhum sentido falar de joelho, olho ou perereca virtuosos. Porque nada disso pode ter boa vontade. Nem qualquer tipo de vontade. Que supõe liberdade deliberativa. E joelhos, olhos e pererecas não deliberam livremente. Pelo menos, supomos nós. 


Desta exaltação da boa vontade como fundamento da moral, quais as consequências? A primeira é a igualdade. Igualdade entre todos nós. Perante Deus, ainda dizem alguns. Perante a lei, garantem os textos constitucionais. A igualdade entre os homens não saiu mais do cardápio das idéias morais. Entendida como óbvia na maioria das sociedades em dias atuais, nem sempre esteve presente no debate sobre a melhor forma de conviver.

Com efeito. Na moral aristocrática dos gregos, só há superioridade e inferioridade. Hierarquia, em suma. Natural, moral e política. O poder exercido pelos melhores. Senhores e soberanos. Sobre os piores, escravos. Por isso, uma sociedade estratificada.

Claro que sempre fomos desiguais em talentos. Em recursos naturais. As faculdades do espírito, que me perdoe Descartes, são tão cruelmente concentradas nas mãos de dois ou três quanto as formozuras corpóreas – e as propriedades rurais em países sem distribuição de renda.

Mas já sabemos que, quando o assunto é moral isso não tem muita importância. Porque os talentos, sejam eles quais forem, não tem, por eles mesmos, nenhuma relevância moral. Podemos ser gênios canalhas. E virtuosos lerdinhos. Feios, brutos e malvados. Lindos heróis ou vilões. O que importa mesmo é a liberdade para decidir bem. Fazer um bom uso desses talentos que são os nossos. Sejam eles quais forem. E essa liberdade, todos temos. Somos, portanto, igualmente livres para uma boa vontade. Para além da nossa natureza. Essa sim, cruel e injusta. Perceba o quanto a idéia de igualdade se choca com a perspectiva naturalista da moral aristocrática.

A segunda consequência desta liberdade como boa vontade é o desinteresse. A ação virtuosa se confunde com a ação desinteressada. A liberdade, como vimos, é a capacidade de descolar da natureza. E, de certa forma, opor-lhe alguma resistência. Ora, o que entendemos por nossa natureza? O ritmo de nosso peristaltismo? A incrível propensão para micoses? Ou enxaquecas? Exemplos de manifestação da nossa natureza. Sem dúvida. Mas que tem pouco a ver com liberdade. Talvez porque nestes exemplos, não haja a que se opor. A que resistir.

Por isso, a natureza que vai nos importar para entender a liberdade e a moral kantiana se materializa nas nossas inclinações. Que podem nos levar a nos ocupar exclusivamente de nós mesmos. Da nossa particularidade. Assim, descolar dela, ou resistir a ela, implica levar em conta os interesses dos outros. Dar lugar aos outros. Para isto, é preciso colocar-se entre parênteses. Considerar outros desejos além dos próprios. E esta auto-limitação supõe que não sejamos 100% egoístas.

Esta reflexão está presente no nosso cotidiano. Todos sabemos distinguir uma conduta interessada de outra desinteressada. E atribuímos mais dignidade moral à segunda. Porque sendo modernos, somos kantianos sem saber. Por isso achamos tão legal quando alguém nos faz um favor do nada. Sem expectativa de retorno. E você enaltece aquele que, sem nunca ter te visto antes, devolve a carteira que você tinha perdido. Com todo dinheiro dentro. Menos valoroso é o taxista, que cobra pelo deslocamento. Menos ainda é o caroneiro sacana, que espera um pagamento em serviços eróticos. Mas a carona desinteressada, esta sim, é moralmente superior.


A terceira consequência desta liberdade é o universalismo. A vontade, para ser uma boa vontade, deve se justificar universalmente. O dever, que resulta de uma atividade intelectiva, deve valer para qualquer um. No lugar de um Deus universal, uma razão universal, ou capaz de parir o universal. 

Neste ponto, o senso comum moral se afasta do kantismo. Porque é muito comum justificativas que se fundem na parcialidade do julgamento moral. O certo e o errado vai muito de cada um, decreta o palpiteiro, com ares de erudição. Além do senso comum, pensadores legítimos, arautos da pós-modernidade, consideram que um dos principais pontos de ruptura entre o pós e o simplesmente moderno reside neste ponto, da universalidade moral.

Michel Maffesoli, representante reconhecido desta corrente pós moderna, afirma que a sociedade de hoje é politeísta, em relação à sociedade moderna, monoteísta. E com este politeísmo não quer dizer só muitos deuses, mas também muitos valores, várias formas de julgar moralmente.

Mas, voltemos a Kant. Faça de tal maneira que a máxima que preside a tua ação possa ser universalizada. Possa ser transformada em lei. Eis a fórmula do imperativo categórico. Perceba a tangência entre esse universalismo e o desinteresse. Afinal, toda pretensão de universalidade implica a negação da própria particularidade. A resistência frente aos próprios interesses. Ao egoísmo. Para levar em conta o interesse geral, o bem comum, é preciso considerar o interesse dos outros. Descolar da própria natureza egoísta. 
Importa lembrar aqui que esta consideração do interesse do outro não é natural. Exige, portanto, um esforço. Em outras palavras, todo aquele que faz o que quer vive determinado pela própria natureza. É escravo de seus apetites. Para ser livre, ter boa vontade, considerar o outro e buscar o universal, é preciso remar contra a corrente, ir na contramão, estar, todo o tempo, focado no respeito ao dever. 

Desta forma, enquanto para os gregos a virtude corresponde à atualização dos talentos naturais, à realização da natureza em nós, para este pensamento, a virtude é uma resistência ou oposição a essa mesma natureza. A luta contra a natureza em nós. Disposição que se aprende. Que se fabrica. Por não ser inata. Que exige educação. De alunos, sem luz na etimologia. Porque a matéria bruta é sombria.

Assim, é preciso saber viver. Sentença titânica. Mas não nascemos sabendo. Resta-nos aprender. Porque a vontade tem que falar sempre. Já que nossa natureza se cala tão rápido. Porque a vida sempre vai depender de nossas intervenções. De nossas escolhas. Por sorte, para saber viver, não temos que começar do zero. Outros já aprenderam tanto. Com seu próprio sofrimento. Podem nos ensinar. Para que algumas tristezas sejam evitadas. Só algumas. Porque nossa trajetória no mundo é inédita. E as experiências alheias ajudam até certo ponto. Sempre haverá uma boa parcela de mistério. Abacaxi que é só nosso. Para que descubramos saberes novos. E ensinemos também, algum dia. Só assim sentimo-nos partícipes da humanidade. Constituída por outros que, como nós, incautos, começaram a existir sem aviso prévio. E, como nós, tem que ir encontrando solução para uma existência que não é nem uma roubada nem um milagre. É o que é. E o que é acaba dependendo um pouco do que fazemos dela. Toda educação se volta para minimizar a angústia. Com maior ou menor consciência disto.

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Clóvis de Barros Filho é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo e em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Casper Líbero, mestre em Ciências Políticas pela Université de Paris III (Sorbone-Nouvelle) e doutor  em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo. É livre-docente da Escola de Comunicação e Artes da USP. Atualmente é professor em regime de Turno Completo da Universidade e São Paulo, conferencista pelo Espaço Ética e Pesquisa e professor de Teoria e Ética da Comunicação e Filosofia da Comunicação. É autor de projetos de pesquisa, livros e artigos publicados em periódicos, jornais e revistas e participa de bancas examinadoras.

Texto elaborado para o módulo "Ética e Cultura" do curso "Meritocracia e Gestão de Desempenho - e-learning" que integra o Programa de Aperfeiçoamento de Pessoal em Gestão de Pessoas e Recursos Humanos - PAP-RH.




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