Congresso 2015

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terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Aprender a viver. A nossa condição. - três sentidos para liberdade. [Clóvis de Barros Filho]


Três sentidos para liberdade

O primeiro sentido de liberdade é mesmo este a que você se referiu um pouco acima: de fazer o que se quer. Liberdade de agir. De fazer alguma coisa. Liberdade física. De movimento, de deslocamento. Liberdade evidente num animal selvagem. Sobre a qual não pairam dúvidas. Sua realidade é comprovada o tempo todo. Pela experiência de cada um. Um animal que age apenas pela sua vontade é livre. Neste sentido físico da liberdade. Também dizemos que uma pessoa é livre, ou dona do seu nariz, quando pode agir de acordo com sua vontade. Como na degustação de um pastel de feira acompanhado de um copo de caldo de cana. O mesmo diríamos de todo um povo. Que é livre quando pode definir sua própria trajetória. Afinal, a liberdade política é, antes de tudo, física.

Esta liberdade para agir é o contrário da obrigação. Ou da escravidão. Ou ainda, como observa Hobbes, ausência de qualquer impedimento que se oponha ao movimento. A água que se encontra num copo não é livre. Porque este último impede seu dispersar. Fica mais claro quando o obstáculo é removido. O copo se rompe. E a água recupera sua liberdade. Também os antigos espartilhos ou as mais recentes meias anti varizes. Impedimento à expansão das carnes e suas gorduras. Da mesma forma, qualquer um de nós será livre para agir quando nada nem ninguém impedir seus movimentos.

Em contrapartida, esta mesma liberdade também nunca será absoluta. Afinal, ninguém pode fazer, a todo momento, tudo o que quer. Porque não estamos sós. E deslocamentos produzem efeitos. Afetam a trajetória alheia. Convertendo toda convivência numa seqüência de obstáculos.

Muitos destes obstáculos ganham estatuto de lei. E é, paradoxalmente, graças a elas, que algumas liberdades remanescentes se tornam efetivas. Não há liberdade sem lei, ensina Locke. É como abrir mão de um pedaço da torta para ter certeza de dispor do resto. Ao qual passamos a ter direito. Resto que podemos exigir. Porque a mesma força que nos limita, limita os outros. Podendo, assim, garantir. Uma liberdade que mesmo não sendo absoluta, tem realidade e valor incontestável.


Passemos agora a um outro sentido de liberdade. Que não é mais de agir, no sentido mais coloquial. Mas de pensar. Liberdade intelectual. Que tem por objeto o pensamento. Condição de um livre pensador. Corresponde ao que Aristóteles já descrevia como to hékousion kai akousion – o intencional e o não intencional. A questão aqui é a liberdade do espírito. O direito, nos estados ditos democráticos, – por intermédio das liberdades públicas garantidas constitucionalmente – já cuidou em parte do problema. Afinal, esta liberdade de pensamento de que falamos é correlata à de informação, de expressão, de culto etc.

Por causa dela e por ela somos responsáveis. Afinal, não se trata apenas de fazer o que se quer. Mas de ter consciência das próprias decisões. De agir com conhecimento de causa, como se diz. Isto acontece quando, na hora de agir, várias possibilidades passam pela nossa cabeça. E uma delas é escolhida. Como resultado de um exercício intelectivo. Da aplicação de um critério, ou de uma máxima de conduta.

Mas, para além da política, haverá liberdade intelectiva quando estamos em plena resolução de um problema matemático que já tem uma resposta certa? Não estaríamos, neste caso, constrangidos por uma resolução que se impõe a nós. Não será uma forma de escravidão ter que seguir certos passos para chegar a um resultado que não podemos contornar? Penso que não. Afinal, continuo pensando o que quero. Sem nenhum constrangimento externo. O espírito pensa o que quer. Sem obedecer a ninguém. Porque é livre. E se busca a resolução verdadeira, faz o que quer. Porque quer. Se encontra o resultado verdadeiro do problema, consuma ai sua própria liberdade. Porque se não buscasse livremente a verdade, estaria à deriva, delirante.

O que falta deixar claro? Que aqui a liberdade nada tem a ver com escolha. Porque a área de um quadrado corresponde ao quadrado do seu lado. E o triângulo retângulo que o divide em dois tem a sua área definida pela metade da área do quadrado. Necessariamente. E chamamos de liberdade a este discernimento. De uma verdade que nunca se impôs. Mas que, com liberdade, é alcançada. Se a verdade matemática escravizasse, quantos erros eu mesmo não teria cometido, quantas notas baixas em geometria teria evitado.... A liberdade na verdade não se confunde com a liberdade na escolha. Porque aquela é necessária. Esta, é simples contingência.


Até aqui apresentamos dois sentidos para liberdade. A de fazer e a de pensar. Discutimos se somos livres para fazer o que queremos. Liberdade física de agir sobre o mundo. E se somos livres para pensar o que queremos. Liberdade de pensar sobre o mundo. Mas estes dois sentidos não permitiram ainda enquadrar a provocação inicial deste artigo. Afinal, como vimos, não basta ser livre para fazer ou pensar o que queremos. Ainda é preciso ser livre para querer o que queremos. Aqui o sentido de liberdade mudou. Antes de tudo porque passou a ser outro seu objeto.

No primeiro sentido, ser livre é questão de poder agir. Seu objeto é, portanto, a ação. A liberdade é física. De fazer ou não. No segundo sentido, ser livre é questão de poder pensar. Seu objeto é, então, o pensamento. A liberdade é intelectiva. De pensar ou não. Neste terceiro sentido, ser livre é questão de querer. E o objeto agora passou a ser a vontade. A liberdade deixou de ser simplesmente física ou intelectiva. Por isso, muitos a denominam metafísica. E até absoluta ou sobrenatural. Liberdade de querer. Ou não.

Afinal, seremos livres para querer o que queremos? Vocês que vieram livremente a esta aula. Nada nem ninguém os impediu. Vieram, então, porque quiseram. Movidos pela própria vontade. Em algum instante tiveram vontade de vir. Neste preciso instante, terão sido livres para querer vir a aula?
Consideramos uma eleição democrática, quando o povo, livremente, escolhe seus representantes. De fato, respeitadas as regras eleitorais e a oferta do mercado das candidaturas, cada cidadão comparece à urna e vota, sem constrangimento. Liberdade de votar. Liberdade física de apertar os botões correspondentes ao candidato que considera mais adequado. Que pressupõe uma vontade anterior. Uma intenção de voto. Mas, ainda assim, cabe a pergunta? Terá havido liberdade de querer votar neste ou naquele dos postulantes?

Ou será o voto o simples resultado mecânico da socialização política do eleitor – que aprendeu, na família, classe ou clã a que pertence, a definir suas escolhas com base em certos valores? Ou das inclinações emocionais de simpatia e antipatia patrocinadas pelo trabalho político de apresentação midiática dos candidatos, definidas por astuciosos marketeiros? Ou ainda da construção identitária que nos leva – ainda que cada vez mais raramente – a nos apresentar socialmente como sendo de esquerda ou de direita, liberal ou conservador, simpatizante ou até militante deste ou daquele partido? Ou talvez de tantas outras variáveis que pretendam explicar cientificamente a intenção de voto? Neste caso, votar livremente, em quem queremos, não implicaria estar refém de tantas condições que não resultam de nossa livre deliberação? Esta liberdade de querer, de vontade, metafísica é a que mais interessa à filosofia. A que mais intriga. E que mais mereceu a atenção de pensadores consagrados. Vamos recorrer a Kant. Porque sua influência é colossal. Porque seu pensamento é pano de fundo do que corriqueiramente entendemos por moral no mundo moderno.


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Clóvis de Barros Filho é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo e em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Casper Líbero, mestre em Ciências Políticas pela Université de Paris III (Sorbone-Nouvelle) e doutor  em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo. É livre-docente da Escola de Comunicação e Artes da USP. Atualmente é professor em regime de Turno Completo da Universidade e São Paulo, conferencista pelo Espaço Ética e Pesquisa e professor de Teoria e Ética da Comunicação e Filosofia da Comunicação. É autor de projetos de pesquisa, livros e artigos publicados em periódicos, jornais e revistas e participa de bancas examinadoras.

Texto elaborado para o módulo "Ética e Cultura" do curso "Meritocracia e Gestão de Desempenho - e-learning" que integra o Programa de Aperfeiçoamento de Pessoal em Gestão de Pessoas e Recursos Humanos - PAP-RH.



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