por Hamilton Coimbra
Carvalho*
Imagine que você está realizando um
difícil teste de matemática e que receberá uma recompensa em dinheiro de acordo
com o número de questões que você acertar. Imagine ainda que, após terminar o
teste, você recebe a folha de respostas para transcrever as alternativas
escolhidas. Nessa folha de respostas já estão marcadas quais as alternativas
corretas. Você pode transcrever corretamente ou não, porque ninguém vai checar.
Mais do que isso, você transcreve as respostas, conta mentalmente quantas
alternativas você disse que acertou, levanta-se, vai até um fragmentador de
papel e destrói tanto a folha original com os testes quanto a folha de
respostas. A seguir, você se dirige a uma jarra onde está o dinheiro e pega o
valor correspondente ao número de testes que você teria acertado, sem nenhum
risco de ninguém conferir se você agiu honestamente ou não. O que você acha
que, no geral, as pessoas fariam em uma situação dessas? Elas pegariam a
recompensa com base no número correto de testes certos ou trapaceariam? Um
pouco ou muito? Contenha sua curiosidade por ora – a resposta será dada mais
adiante. O que esse exemplo mostra é que pode haver situações em que as pessoas
se sentem tentadas a adotar um comportamento desonesto em função dos incentivos
que encontram. Mas será que apenas os incentivos externos contam?
Uma das áreas que vem despertando a
curiosidade do acadêmico norte-americano Dan Ariely, que é um dos mais profícuos
no estudo do comportamento humano, é justamente o estudo do comportamento
desonesto. O objetivo deste artigo é delinear os fatores que explicam esse
comportamento, com base nos estudos de Ariely, e discutir brevemente algumas
formas propostas para atenuá-lo. O tema tem relevância em diversos contextos.
Lembre-se, por exemplo, das fraudes contábeis que derrubaram empresas
importantes (Enron, Worldcom) nos Estados Unidos há alguns anos. Ou da inglória
batalha da indústria fonográfica e de software contra a pirataria. Ou ainda dos
furtos de produtos que corroem os ganhos no varejo. No contexto da
administração tributária, a relevância vem do fato de o comportamento desonesto
ter reflexos na sonegação de impostos, na prestação de informações incorretas ou
mesmo na falta de cumprimento de obrigações acessórias, como o fornecimento da
nota fiscal aos consumidores. É o que se chama, em inglês, de non-compliance.
O problema, de fato, é mundial: O IRS (Internal Revenue Service),
principal órgão da administração tributária nos Estados Unidos, estima o gap
tributário naquele país na ordem de US$ 345 bilhões por ano, o que corresponde
a uma taxa de non-compliance de 16,3%.
A visão tradicional do comportamento
desonesto é aquela que prevê que as pessoas fazem um cálculo racional dos
custos e benefícios associados com os resultados desse comportamento e ajustam
sua conduta com base nesse cálculo. Porém, o que as pesquisas na área de
comportamento do consumidor vêm mostrando, já há um bom tempo, é que os
pressupostos teóricos do Homo economicus, pautado pela racionalidade,
não se sustentam na prática.
Em realidade, o que se sabe atualmente
é que, quando se trata de comportamento humano, diversos vieses e processos
interferem na decisão e escolha de alternativas, nas avaliação que fazemos
sobre qualquer coisa (por exemplo: sobre pagar os impostos corretamente), na
formação das crenças e atitudes, na intenção de executar determinado comportamento
e na sua própria execução.
No caso específico da desonestidade,
Mazar e Ariely (2006) propõem, com base em resultados de diversos estudos
interdisciplinares, que nós possuímos um mecanismo interno de recompensas,
desenvolvido por meio da socialização, que influencia nossas decisões nessa
área. Há, inclusive, evidência da neurociência apontando que o centro de prazer
no cérebro é ativado quando as pessoas agem de acordo com seus valores e com as
normas sociais internalizadas (mais sobre normas sociais adiante). Ou
seja, o ser humano, ao considerar a possibilidade de executar um comportamento
desonesto, é motivado não apenas pelo cálculo de custos e benefícios externos
(exemplo: risco de ser fiscalizado, possíveis ganhos associados com o
não-recolhimento dos impostos), mas também por um mecanismo interno de
recompensas que reflete os valores pessoais e normas da sociedade
internalizadas no indivíduo. É a ativação desse mecanismo que levaria à
inibição do comportamento desonesto mesmo diante da tentação representada pela
existência de benefícios líquidos percebidos. É como se fosse um guardião
moral que habita cada um de nós. A idéia não é nova: esse mecanismo guarda
bastante similaridade com o conceito freudiano de superego. Porém, Ariely
demonstrou, de forma empírica, que é possível ativar esse guardião moral e
evitar, ou mitigar, a adoção de condutas desonestas.
Para entender melhor como isso ocorre,
visualize o gráfico mostrado a seguir (Figura 1).
Figura 1 – Grau de desonestidade versus
benefícios líquidos esperados da desonestidade
Fonte: Mazar e
Ariely (2006).
No estágio (1), a existência de
recompensas externas líquidas (isto é, benefícios maiores do que custos) leva à
desonestidade. Mas aqui estamos tratando de recompensas pequenas, que não
ativam o mecanismo interno de controle das pessoas (o guardião moral) e que são
muito fáceis de serem racionalizadas, especialmente se a recompensa for do tipo
não monetária. Um exemplo seria um funcionário de uma empresa pegar para si uma
peça do material de escritório, como uma caneta. Porém, o aumento no nível de
recompensas externas, ainda que possa levar ao aumento na tentação para a
adoção do comportamento desonesto, tende a acordar o guardião moral e inibir
esse comportamento. É como se a pessoa, em determinado ponto (o activation
threshold do gráfico acima) percebesse que está agindo de forma contrária
ao papel que a sociedade espera dela. De acordo com Ariely (2008), uma das
dificuldades em combater a desonestidade reside no fato de que o guardião moral
interno tende a ficar ativo apenas quando passamos a contemplar grandes transgressões.
Assim, poucas pessoas teriam problemas de consciência em tomar posse de uma
caneta em uma sala de reuniões, mas praticamente ninguém tomaria posse de uma
caixa inteira de canetas.
Perceba que, então, no estágio (2),
ainda que o nível líquido de recompensas externas continue aumentando, não há
variação no nível de desonestidade. Porém, se esse nível de recompensas atinge
um nível muito elevado, a tendência, mostrada no estágio (3), é o aumento da
desonestidade.
Você pode estar se perguntando nesse
ponto: o gráfico faz sentido, mas como é que se mede isso? Lembra-se do exemplo
inicial do teste de matemática? Pois bem, a situação ali descrita constituiu
uma das condições testadas em um experimento relatado por Mazar e Ariely. Vale
lembrar que experimentos têm sido, no campo de estudo do comportamento do
consumidor, uma das principais maneiras de testar hipóteses e teorias. No
estudo em questão, dividiram-se alunos universitários em alguns grupos. Um dos
grupos esteve na condição descrita no início do artigo (podiam mentir sobre o
número de questões acertadas, sem o menor risco de serem descobertos, pois
fragmentavam a prova e a folha de respostas). Isso representa claramente, no
gráfico visto há pouco, o extremo à direita do estágio (3). Outros grupos
estavam em condições em que o incentivo era um pouco menor (o risco de serem
descobertos fraudando a prova era existente, ainda que pequeno), mas
definitivamente ainda no estágio (3). Por outro lado, um grupo de estudantes
fez o teste da forma tradicional, sem chance de fraude, para fins de comparação
dos resultados. O que os resultados mostraram? Todos os estudantes que tinham
um incentivo grande para trapacear, ou seja, que estavam no estágio (3),
trapacearam, em patamares similares – o que mostra que, se o incentivo for
grande, as pessoas tendem mesmo a trapacear, mas também mostra que o mecanismo
interno de controle limitou a extensão da desonestidade, pois os níveis de
trapaça foram similares.
O mais interessante vem agora. Os
estudos de Ariely indicam que é possível fazer com que esse mecanismo interno
(o guardião moral) passe a agir mais cedo, isto é, que aquela linha pontilhada
vertical no gráfico se desloque para a esquerda, inibindo o comportamento
desonesto nos primeiros níveis da tentação. Assim, procedimentos que tornem
saliente o conceito de honestidade e/ou a imagem que a pessoa gostaria de
transmitir de si própria tendem a acordar o guardião moral e eliminar a
desonestidade. Por exemplo, fazer com que os estudantes, antes de realizar o
teste, tentem se lembrar dos Dez Mandamentos (saliência do conceito de
honestidade) ou assinem um código de honra (auto-imagem), eliminou o
comportamento desonesto nos testes, mesmo em condições em que havia baixo risco
de serem descobertos trapaceando.
Antes de passar para o comportamento
desonesto na área tributária, que é de maior interesse aqui, é necessário,
porém, lembrar que, em muitos casos, o auto-engano (self-deception) pode
impedir a ativação do guardião moral. O auto-engano é a representação errada da
realidade que uma pessoa faz, de forma não consciente, de modo que ela
interpreta as informações com um viés que lhe convém. Assim como as pessoas
tendem a se considerar motoristas melhores do que a média, ou mais inteligentes
do que a média das pessoas, podem também se considerar que são melhores
cidadãos do que os outros, por exemplo. É razoável imaginar que os contadores
da Enron não se imaginavam diferentes dos demais. Trata-se de um viés que é
dificílimo de ser eliminado, especialmente se o comportamento desonesto está
relacionado com recompensas que não são diretamente monetárias. Nesse sentido,
estudo discutido por Ariely (2008) mostra que a trapaça tende a ser muito maior
quando a possibilidade de ganho é expressa em tokens (representações do
dinheiro, por exemplo uma ficha de jogo). Em outras palavras, o comportamento
desonesto tende a ser maior quando o indivíduo está lidando apenas de forma
indireta e simbólica com dinheiro. Um exemplo seria o ato de
"cozinhar" os livros contábeis, no caso da Enron, ou ainda, em um
contexto ttributário, o fornecimento de declaração incorreta do imposto a
pagar.
Pois bem. Tendo tratado de maneira
breve da teoria proposta pelo pesquisador Dan Ariely, vejamos a seguir uma
tabela em que são apresentadas as sugestões dele para fins de políticas
públicas e um comentário a respeito da aplicabilidade no contexto da
administração tributária, a cargo deste autor.
Tabela 1 - Sugestões para políticas
públicas com vistas à redução da desonestidade
Causa
da desonestidade
|
Sugestão
|
Aplicabilidade
|
Recompensas
externas: Benefícios maiores do que os custos.
|
Aumentar a
probabilidade do fraudador ser pego ou a severidade da punição.
|
Alta. Trata-se do
tipo de política que as administrações tributárias, em geral, procuram
implementar.
|
Mecanismo interno
de recompensas: normas sociais não internalizadas; auto-imagem não saliente.
|
Implementar
esforços de educação e socialização; tornar saliente, por meio de pistas
contextuais, os conceitos de cidadania, honestidade e a auto-imagem (exemplos:
assinar códigos de honra, tornar formulários mais pessoais, realizar pesquisa
que avalie atitudes em relação à cidadania)
|
Média. Pode
exigir mudanças nas leis em alguns casos, mas pode levar a resultados
efetivos, como no caso do Minnesota Tax Experiment (ver abaixo).
|
Auto-engano (self-deception):
viés que leva à interpretação distorcida da realidade.
|
Eliminar os
incentivos que favorecem o viés ou eliminar as situações que dão origem a
esse tipo de comportamento.
|
Baixa. A
aplicação dessas sugestões é mais adequada a situações de conflitos de
interesse, como aquelas vividas por empresas de auditoria nos Estados Unidos
há alguns anos.
|
Fonte:
Adaptado de Mazar e Ariely (2006).
Na literatura de marketing social (campo
do conhecimento que estuda o uso dos conceitos e técnicas de Administração para
induzir comportamentos socialmente desejáveis em segmentos da população, como
prevenção de problemas de saúde), encontram-se diversos exemplos de campanhas
baseadas no conceito de norma social. Basicamente, norma social é a regra de
conduta em determinada situação, conforme a percepção das pessoas.
Assim, se um estudante universitário
acredita que a maior parte dos seus pares consome bebidas alcoólicas em excesso
em festas, esse será o comportamento que ele perceberá como adequado quando
estiver na mesma situação, isto é, em uma festa. As pessoas agem em algumas
situações com base na crença de que "eu faço o que todo o mundo faz".
O que se verifica, todavia, é que, na maior parte dos casos, essas percepções são
incorretas. Assim, campanhas que informem qual é a norma social (ou seja, qual
é o comportamento que prevalece em determinada situação) tendem a ter sucesso
se conseguem modificar as percepções do público-alvo a respeito do
comportamento em questão.
Para ilustrar o potencial das normas
sociais para indução de comportamentos desejados, vamos citar o exemplo do Minnesota
Tax Experiment (Coleman, 1996; Thaler e Sunstein, 2008). O estado
norte-americado do Minnesota realizou, há treze anos, um experimento com uma
amostra representativa de seus contribuintes (pagantes de um adicional do
imposto de renda), que foram divididos em quatro grupos: um deles recebeu
informações a respeito da destinação do dinheiro arrecadado com os impostos
(saúde, educação etc.). A outro grupo foi informado que os serviços de apoio
(como suporte por telefone), que tinham sido ampliados para atender a esse
grupo, estavam disponíveis em maior número de horas e com maiores facilidades.
Para um terceiro grupo, cartas foram enviadas informando que aqueles
contribuintes seriam acompanhados de perto quando informassem seus rendimentos,
em uma espécie de notícia de fiscalização prévia. Por fim, o quarto grupo
recebeu carta informando que mais de 90% dos cidadãos daquele estado cumpriam
suas obrigações tributárias corretamente (isto é, esse grupo foi informado da
norma social). Dos quatro grupos, apenas os dois últimos (ameaça de
fiscalização e norma social) tiveram resultados significativos em termos de
renda informada e pagamento do imposto correspondente. Além disso, como a
fiscalização demandava recursos humanos e materiais razoáveis, a utilização da
norma social foi a que se mostrou mais eficaz do ponto de vista de custos e
benefícios.
Para finalizar, gostaria de ressaltar
o grande desenvolvimento no conhecimento do comportamento humano advindo do que
se convencionou chamar de behavioral economics (economia comportamental),
associado às pesquisas com origem na psicologia social e cognitiva. Hoje se
sabe que o comportamento humano é guiado por diversos fatores que fogem do
rótulo clássico de "racional". Além de fatores internos, como as
emoções e as atitudes, tem-se identificado o enorme poder dos fatores
situacionais no comportamento dos indivíduos, como mostrado nos exemplos discutidos
há pouco. Pequenas alterações na forma como alternativas são apresentadas para
escolha (o que se chama de framming) e na forma como o contexto é
interpretado pelas pessoas podem levar a resultados radicalmente diferentes,
especialmente ao levarmos em conta que, na maior parte do tempo, nós nos
comportamos em um padrão que pode ser chamado de "piloto automático"
(sabe-se, por exemplo, que mais de 80% das compras que fazemos são feitas dessa
forma, sem grandes deliberações). Para ilustrar esse ponto e para encerrar o
artigo, deixe-me contar um exemplo bastante conhecido na literatura, ocorrido
há mais de trinta anos e relatado por Bertrand, Mullainathan e Shafir (2006).
Trata-se do estudo do Bom Samaritano. Seminaristas foram divididos em dois
grupos. Ambos os grupos foram recrutados para dar uma palestra sobre essa
conhecida parábola. A única diferença entre os grupos é que a um deles foi dito
que eles estavam atrasados para a palestra, enquanto para o outro grupo foi
dito que eles tinham tempo suficiente. Para chegar ao local da palestra, os
seminaristas tinham de passar por um caminho, no qual os pesquisadores
colocaram um colaborador que se passou por um homem doente, tossindo e gemendo
como se estivesse sentindo dor, reproduzindo a estória contida na parábola. A
maioria dos seminaristas que estava no grupo que tinha tempo suficiente para a
palestra parou e ajudou a pessoa supostamente em necessidade. A surpresa vem do
fato de que no outro grupo, também composto por seminaristas com anos de
estudos bíblicos, mas que acreditavam estar atrasados para a palestra sobre a
parábola (ou seja, o fator situacional), apenas 10% pararam para ajudar e os
restantes 90% simplesmente passaram por cima do colaborador e correram para dar
a palestra sobre a aplicação prática da parábola do Bom Samaritano.
Referências
bibliográficas
Ariely,
D. Predictably irrational: The hidden forces that shape our decisions.
New York: HarperCollins, 2008.
Bertrand,
M.; Mullainathan, S.; Shafir, E. Behavioral economics and marketing in aid
of decision making among the poor. Journal of Public Policy &
Marketing, v. 25, n, 1, pp. 8-23, 2006.
Coleman,
S. The Minnesota income tax compliance experiment state tax results. Minnesota Department of Revenue, 1996.
Disponível em: <http://www.taxes.state.mn.us/legal_policy/research_reports/content/complnce.pdf>.
Acesso em 02 fev. 2009.
Mazar,
N.; Ariely, D. Dishonesty in everyday life and its policy implications.
Journal of Public Policy & Marketing, v. 25, n, 1, pp. 117-126, 2006.
Thaler,
R. H.; Sunstein, C. R. Nudge: Improving decisions about health, wealth, and
happiness. New York:
Penguin, 2008.
_______________________________________
* Hamilton Coimbra Carvalho, Mestre em Administração pela USP e Agente Fiscal de Rendas do Estado de São Paulo.
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