CAIO MARINI
Professor e consultor
do Núcleo de Administração Pública da Fundação Dom Cabral
1. Preâmbulo
A discussão acadêmica sobre o desenvolvimento humano nas
organizações está próxima de cumprir noventa anos e teve como marco a obra de
Mary Parker Follett¹ (1868— 1933), que foi estranhamente esquecida em seu
tempo, talvez por preconceito e certamente por incompreensão: seus argumentos
estavam muito à frente de sua época. As pregações de Follett estavam baseadas
no trabalho social e no estudo das pessoas como componentes centrais das
organizações. Em particular, defendeu o fortalecimento da consciência social, a
democratização da administração e o conceito de integração na busca da solução
de conflitos. Foi, segundo Peter Drucker, a profeta da gestão e ajudou a
construir as bases da escola das relações humanas bastante conhecida pela
experiência realizada por Elton Mayo, na Wester Electric Company. Inaugurava-se,
assim, uma nova era na teoria administrativa voltada para a consideração dos
motivos e comportamentos humanos em contrapartida à então vigente abordagem
mecanicista da administração. Atrair e reter talentos para a realização da
estratégia eram os desafios do movimento, que tinha como premissa a existência
de conflito entre os interesses individuais e os objetivos organizacionais. De
lá pra cá, importantes conquistas e novos requerimentos foram incorporados,
além das distintas denominações atribuídas a este campo de estudo e de
práticas administrativas: administração de pessoal, relações industriais,
gerência de recursos humanos e, mais recentemente, gestão de pessoas.
A marca distintiva deste momento de transição é, sem dúvida,
a questão do conhecimento (como diferencial competitivo), o que vem impondo o
desafio de introduzir um novo padrão de gestão, em particular, a adoção de
políticas e práticas inovadoras no campo da gestão de pessoas. Isso implica
implementar estratégias de identificação e retenção de talentos, a partir de,
peio menos, duas perspectivas:²
- A primeira delas enfoca a questão como um problema de administração do acesso ao conhecimento. Neste caso, as aplicações se resumem ao uso intensivo de tecnologia da informação (softwares), por meio da criação de bases de conhecimento ou sistemas de identificação de talentos (onde estão?).
- A outra abordagem, menos difundida e certamente mais complexa, é a voltada para o processo da geração do conhecimento. A questão, nesta perspectiva, é a de identificar quais são os atributos organizacionais que estimulam ou inibem o processo da produção do conhecimento e da inovação organizacional (como motivá-los?).
2. Algumas premissas para a formulação de estratégias de
integração e retenção de talentos nas organizações
a) Direcionamento estratégico, que a partir das condições de
contorno (externas e internas), estabeleça a visão de futuro, missão, foco de
atuação e prioridades.
b) Alinhamento do modelo de gestão de pessoas, em particular,
o planejamento estratégico de RH, com a estratégia organizacional visando um
adequado dimensionamento da força de trabalho e a identificação de perfis
profissionais convergentes com as prioridades do negócio.
c) Redesenho do subsistema de recrutamento e seleção.
Tradicionalmente, a estratégia é desenhada a partir da premissa de que a
organização "escolhe" as pessoas segundo requerimentos
pré-estabelecidos. Hoje, o processo é invertido, os talentos
"escolhem" as organizações que atendam às suas expectativas.
d) Adoção de modelo de gestão de pessoas baseado em
competências ajuda a identificar as capacidades instaladas na organização.
e) Sentido de justiça, ética e transparência criam as condições
para a legitimação do processo de identificação dos talentos.
f) Para os processos internos de identificação são
recomendáveis:
- A utilização de ferramentas do tipo Banco de Talentos que contenham registros atualizados sobre as competências instaladas.
- O estabelecimento de trajetórias negociadas de encarreiramento em que pessoas e organização "constroem" projeto de desenvolvimento profissional buscando equilíbrio entre objetivos organizacionais e motivações pessoais.
- Implementação de Programas de educação continuada visando adequar o perfil de competências com as necessidades expressas no direcionamento estratégico.
g) Para os processos externos de identificação são
recomendáveis:
- Construção de redes com parceiros potencialmente "fornecedores" de talentos (universidades, empresas especializadas etc.).
- Programas de trainees, normalmente usados por instituições financeiras e grandes corporações, que investem maciçamente na busca e capacitação de jovens recém saídos das universidades. Funciona como um contrato de risco.
O debate contemporâneo sobre gestão pública vem colocando o
desafio de empreender as reformas de segunda geração ³. As reformas de primeira geração (anos 80 e 90)
tinham uma orientação essencialmente econômica e fiscal e os processos de
transformação da gestão pública neste período foram impregnados pelo ideal do
ganho de eficiência e controle. Já as reformas de segunda geração (início do
século XXI), sem desprezar o ajuste fiscal e a preocupação com a estabilidade
econômica, enfatizam o aumento de bem-estar, o que significa forte orientação
para a promoção do desenvolvimento. O que, objetivamente, significa responder,
dentre outras, as seguintes questões: como assegurar que os modelos de
planejamento governamental garantam a realização dos resultados do
desenvolvimento, como alinhar as agendas das organizações (arquitetura
governamental) com a agenda estratégica e como garantir a alocação adequada dos
recursos para o alcance dos resultados pretendidos? Este último aspecto destaca
a necessidade de implementar estratégias de identificação e manutenção de
talentos (em quantidade e qualidade) de forma a assegurar a realização dos
objetivos de desenvolvimento. Na mesma linha, Longo 4 destaca que a finalidade de um sistema de
gestão de recursos humanos é "a adequação das pessoas à estratégia da
organização".
A figura a seguir ilustra, de forma esquemática, o enfoque
proposto:
Entretanto, algumas barreiras dificultam a implementação de
estratégias de identificação e manutenção de talentos:
- Ausência de direcionamento e coerência estratégica faz com que os processos de atração de talentos (recrutamento e seleção) sejam autóctones. Nem sempre estão orientados à adequação do perfil de competências necessário para a realização das prioridades de governo.
- Reformas de primeira geração com foco exclusivo no ajuste (visto apenas como corte de despesas e investimento) comprometeram a capacidade institucional instalada na administração pública. Reposição de quadros e capacitação perderam importância estratégica.
- Orientação excessivamente cartorial da função gestão de recursos humanos (gestão de folha de pagamento e controle de gastos) reduziu dimensão estratégica da função.
- Políticas de RH fragmentadas e práticas obsoletas (indústria do concurso, remuneração por tempo de serviço, rigidez nas contratações, estabilidade rígida não estimula a mobilidade...) também contribuíram para a perda de foco estratégico.
- Excessiva rigidez burocrática e normativa dificulta a implementação de estratégias de identificação e retenção de talentos. As normas que regem as práticas de gestão de RH tendem a ser de uso generalizado enquanto que os problemas requerem tratamentos diferenciados que respeitem a especificidade de cada órgão.
- Diferenças nos mercados de trabalho público e privado — notadamente com relação a remuneração — acabam gerando um êxodo de talentos para o setor privado, o que faz com que as pessoas identificadas não se sintam motivadas para ingressar ou continuar no setor público.
- Falta de proatividade nas práticas de gestão: só se dá atenção quando o talento sai (prevenção é fundamental).
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Texto retirado do Seminário "Gestão de Pessoas no Setor Público", realizado entre 11 e 13 de maio de 2005.
¹ Alguns de seus escritos clássicos:
Follett, M. P. The New State: Group Organization the Solution of Popular Government. New York, Longmans, Green and Co., 1918. Follett, M. P. Creative Experience. New York , Peter Smith, 1951. Reprint with permission by Longmans, Green and Co., 1924.
² Ver a respeito Marini, Caio. "A gestão do conhecimento na reforma gerencial", in Revista Reforma Gerencial, janeiro de 1999.
³ ver Marini & Martins, Um governo matricial — estruturas em rede para geração de resultados de desenvolvimento. IX Congresso Interna¬cional do CLAD sobre Reforma do Estado e Administração Pública, Madri, novembro de 2004.
Longo, Francisco. Mérito y flexibilidad: ia gestión de personas en las organizaciones dei sector público. Barcelona, Piados, 2004.
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