Congresso 2015

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segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Aprender a viver. A nossa condição. [Clóvis de Barros Filho]

Man Ray, La fortune

O livre arbítrio costuma ser apresentado como nosso bem mais precioso. Nosso traço distintivo. A liberdade de nossa vontade nos distingue do resto dos viventes. Vontade que nos confere uma dignidade ausente em qualquer outra criatura. Em nome deste livre arbítrio podemos ser sujeitos de direitos e obrigações, somos responsáveis pelos nossos atos, gozamos de cidadania, liberdades políticas e prerrogativas de expressão.

A que corresponde, então, este fundamento de tanta coisa importante? Que nos torna tão especiais? Liberdade de fazer escolhas. De controlar as rédeas da própria existência. De definir uma trajetória em detrimento de tantas outras possíveis. De dizer sim ou não aos outros. De relacionar-se ou abortar relacionamentos. De se entupir de guloseimas ou jejuar. De votar neste ou naquele candidato. Liberdade de deliberar sobre tantas coisas. Não falta materialidade prática para o tal livre arbítrio. Sem ele seríamos simples marionetes. Peras a espera da madurêz para abandonar a pereira. Gatos regidos por sua natureza instintiva.

Mas não basta deliberar. Ainda é preciso que esta deliberação se converta em conduta de carne e osso. Por isso, além de ser capazes de escolher nossos atos, seríamos dotados de uma força de vontade que nos constrangeria a agir de acordo com nossas deliberações e escolhas. A executar todas as decisões tomadas. Esta força de vontade permitiria ao homem viver de acordo com suas deliberações. E sua existência seria regida pela sua intelecção. Tornando-o criador de si mesmo, escultor de sua própria trajetória. Seríamos, portanto, neste caso, o que quiséssemos ser. Se deus criou o mundo do nada, o homem criaria a própria vida a partir de suas intenções, de seus princípios e valores.

Ao examinar a própria vida, nossas experiências parecem confirmar essa prerrogativa quase divina do homem. Afinal, se em muitos momentos ficamos de bobeira, jogamos conversa fora e deixamos a vida nos levar, também é freqüente que concentremos nossos esforços para alcançar algum objetivo que deliberamos perseguir. 


Assim, decidimos por nos repaginar, nos reinventar, buscar novos horizontes e dar a vida um novo rumo. E chegamos a nos gabar da própria determinação para tudo isto. Da força de vontade que permitiu um renascer. Do empenho e da resistência contra todos os obstáculos. Como também abundam denominações e alcunhas pejorativas para os menos tinhosos. Muitas delas inspiradas em glúteos e sua falta de rigidez.

Apesar de nossas experiências triunfais, em que conseguimos o que decidimos conseguir, nada prova que a vontade seja efetivamente a causa de nossos esforços; nada garante que uma decisão tomada pela razão possa determinar aquele enorme investimento de energia que nos permitiu uma certa performance. E temos motivos de sobra para desconfiar desta relação entre deliberação de vontade e disposição para a ação. Isto porque todos nós, em muitas outras situações, a despeito de tomar decisões, fazer projetos e identificar o que tinha de ser feito adiamos dia a dia sua execução sem manifestar entusiasmo algum. 

Lembro-me de um livro que tinha de terminar. E sempre arrumava alguma coisa para fazer no lugar. Do projeto de poupar algum dinheiro para a velhice. De um amigo de faculdade que assegurava estar enrolando há 12 anos para se divorciar. De outro que, apesar de todos os sinais positivos da amada, não ousava propor-lhe o conluio. Sem falar das dietas, do cigarro, da fidelidade conjugal que a cada virada de ano povoam as intenções de tanta gente. Quanto fracasso!

Em todas estas situações, será que tudo é só culpa da falta de vontade? Não, bradaremos todos nós, coro dos fracassados. Mas neste caso, teremos que admitir também que quando tudo dá certo, não foi só a tal força de vontade a responsável. Parece provável que, tanto num caso quanto no outro, o essencial sobre o que vai mesmo acontecer conosco na hora de agir acaba escapando à nossa vontade. O essencial do jogo aparentemente é jogado longe dos nossos planos. Ao arrepio das nossas ótimas intenções. E das idéias caricaturais que temos sobre nós mesmos e sobre o que queremos vir a ser. Comecemos com uma provocação. Um aquecimento. 

Muitos leitores, se perguntados sobre liberdade, dirão, espontaneamente, que somos livres quando fazemos o que queremos. Neste caso, nossa ação seria livre quando adequada a um querer que lhe fosse anterior. Portanto, primeiro haveria um querer; e, só depois, a possibilidade de livremente agir de acordo com ele. Primeiro o querer degustar uma beringela gratinada e, depois, a liberdade para degustá-la. Ora, se é assim, o querer é condição da liberdade. Se eu não quisesse tanto a tal da beringela, a liberdade para comê-la não teria a menor relevância.

Em outras palavras, a ação livre seria determinada pelo querer. Submetida aos desejos. E neste caso, de livre não teria nada. Já que toda liberdade supõe indeterminação. A liberdade não passaria, então, de uma escravidão. Constatação absurda. Por isso, quem faz o que quer não é tão livre quanto pensa. 

E você, que um dia mandou tudo às favas, e a bordo de um carro conversível foi se refestelar na praia, cabelos ao vento, em pleno dia de semana, antecipando as delícias de um banho de mar, só será livre para publicitários de calças para jovens ou de absorventes de mulheres modernas e emancipadas. Provocação feita. Ser livre não pode corresponder a viver segundo o querer. Mas então a que corresponderá? Tomo você pela mão e passeio por pensamentos ilustres. Como o de Shopenhauer. Filósofo interessado pelo tema do livre-arbítrio.

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Clóvis de Barros Filho é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo e em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Casper Líbero, mestre em Ciências Políticas pela Université de Paris III (Sorbone-Nouvelle) e doutor  em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo. É livre-docente da Escola de Comunicação e Artes da USP. Atualmente é professor em regime de Turno Completo da Universidade e São Paulo, conferencista pelo Espaço Ética e Pesquisa e professor de Teoria e Ética da Comunicação e Filosofia da Comunicação. É autor de projetos de pesquisa, livros e artigos publicados em periódicos, jornais e revistas e participa de bancas examinadoras.

Texto elaborado para o módulo "Ética e Cultura" do curso "Meritocracia e Gestão de Desempenho - e-learning" que integra o Programa de Aperfeiçoamento de Pessoal em Gestão de Pessoas e Recursos Humanos - PAP-RH.

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