Congresso 2015

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domingo, 8 de janeiro de 2012

Comprometimento de servidores públicos e alcance de missões organizacionais [parte 1]


Dulce Pires Flauzino[1]
Jairo Eduardo Borges-Andrade[2]


Sumário
1. Introdução;
2. Método;


RESUMO
O comprometer-se com a organização envolve alguma atividade do indivíduo no sentido de identificar-se com ela e desejar manter-se como seu membro, a fim de satisfazer seus interesses e facilitar o alcance das missões organizacionais. Adotando a concepção de comprometimento afetivo de Mowday, Porter e Steers (1979), que enfatiza a natureza do processo de identificação do indivíduo com os objetivos e valores da organização, e a escala reduzida proposta por Bastos (1994), este artigo analisa o comprometimento organizacional de servidores públicos ligados à atividade-fim em saúde, educação e segurança. Os resultados apontam que o instrumento modificado permite identificar o comprometimento dos servidores e que este está vinculado à missão organizacional percebida e não à missão real. Na amostra estudada, altos níveis de comprometimento foram encontrados entre servidores da área de segurança, quando comparada às áreas de saúde e educação.



1. Introdução

Becker (1992), ao rever estudos sobre comprometimento no trabalho, afirma existirem dois aspectos comumente salientados: os focos (organização, carreira e sindicatos, por exemplo) e as bases de comprometimento (afetiva, instrumental, normativa, entre outras). Os focos podem funcionar como alvos dos vínculos estabelecidos pelo trabalhador e as bases se referem à natureza ou aos motivos que levam ao comprometimento.

Bastos (1994) faz uma revisão sobre comprometimento com a organização e constata uma diversidade de definições associadas às operacionalizações do referido constructo. Ele aponta a existência de cinco vertentes de pesquisa, que se baseiam nos enfoques comportamental, normativo, afetivo, calculativo e autoridade no contexto de trabalho.

Na vertente atitudinal/afetiva, Mowday, Porter e Steers (1979, 1982) definiram o constructo enfatizando a natureza do processo de identificação do indivíduo com os objetivos e valores da organização. Para definirem o constructo, eles utilizaram três dimensões básicas: forte crença e aceitação dos valores e objetivos da organização; forte desejo de manter o vínculo com a organização; e intenção de se esforçar em prol da organização. As variáveis utilizadas para explicar o comprometimento consistem em características pessoais, características do trabalho, experiências no trabalho e “estados do papel” (o que é esperado do sujeito e coincidente com as realizações esperadas).

A vertente instrumental, também denominada calculativa, continuação e side-bets, concebe o comprometimento como uma função das recompensas e custos associados por estar na condição de integrante da organização — o indivíduo se mantém engajado por avaliar que os custos associados à sua saída são mais altos do que os benefícios, ou seja, ele permanece na organização porque necessita permanecer.

No enfoque sociológico está integrado o conceito de consentimento segundo o qual a organização de trabalho oferece escolhas reais aos trabalhadores, mesmo que de forma restrita. Assim, as instituições[3] são enfatizadas como reguladoras e modeladoras dos conflitos sociais, diminuindo o efeito de fatores externos como escola, religião e família na produção.

A vertente da autoridade no contexto de trabalho, proposta por Halaby (1986, citado por Bastos, 1994) define o vínculo do trabalhador em termos das relações de autoridade que embasam o controle do empregador e a subordinação dos trabalhadores.

O enfoque normativo se baseia na estrutura das atitudes e do seu poder preditivo em relação ao comportamento, conceitualizando o comprometimento como o “conjunto de pressões normativas internalizadas pelo indivíduo para que se comporte congruentemente como os objetivos e interesses da organização” (Bastos, 1994:51). Há, assim, uma tentativa de integrar as pressões internalizadas (plano de análise individual) e os valores e normas partilhados associados às crenças instrumentais (plano de análise organizacional).

A última vertente — comportamental ou da consistência cognitiva — considera que a avaliação de comprometimento pelo trabalhador é feita para manter a consistência entre os seus comportamentos e as suas atitudes.

Apesar de não haver consenso sobre o constructo de comprometimento organizacional, a literatura apresenta amplo predomínio da concepção afeti va. Isso ocorre juntamente com a preponderância do uso da escala OCQ (organizational commitment questionaire). A escala OCQ foi proposta em 1970 por Porter e Smith. Posteriormente, Mowday, Porter e Steers (1979) continuaram realizando estudos que utilizavam a escala. O mesmo ocorreu com outros estudiosos do comportamento, sendo que Mowday, Porter e Steers (1979) passaram a ser os autores mais amplamente citados quando se trata do tema em questão. A versão reduzida do instrumento foi, então, construída por Mowday, Porter e Steers (1982).
Na metaanálise realizada por Mathieu e Zajac (1990), foi encontrado um coeficiente α de Cronbach de 0,88 para a versão completa (15 itens) e de 0,85 para a versão reduzida (nove itens). Apesar da superioridade da confiabilidade e da validade discriminante do OCQ quando comparado com escalas que medem comprometimento sob a perspectiva instrumental ou calculativa, existem controvérsias quanto à sua estrutura fatorial. Tetrick e Farkas (1988) encontraram uma estrutura bifatorial para o comprometimento afetivo (fator 1 — comprometimento com os valores da organização e fator 2 — intenções comportamentais de permanência na organização). Todavia, eles identificaram estabilidade temporal crescente no decorrer do tempo apenas para o fator 1. Isso os levou a, além de recomendar novos estudos longitudinais, sugerir o uso da versão reduzida da OCQ (nove itens) tal como indicado por Mowday, Porter e Steers (1979), posto que os nove itens se relacionavam ao fator 1, além de que o fator 2 não era previsível a partir de sua própria medida em período anterior.

No contexto brasileiro, Borges-Andrade, Afanasieff e Silva (1989) validaram a escala OCQ — versão completa, tendo encontrado um α de Cronbach  de 0,86. Bastos (1994) utilizou a escala reduzida (nove itens), retirando os sete itens que mensuravam intenções comportamentais. O autor encontrou um αde Cronbach de 0,88, com eigenvalue de 6,133 e 22,7% da variância explicada e 71% da comunalidade. Por esse motivo, o autor recomenda o uso da escala reduzida, posto que a mesma consegue avaliar o comprometimento organizacional afetivo sem incorporação dos aspectos relativos a intenções e tem um αmaior em relação ao estudo de Borges-Andrade, Afanasieff e Silva (1989).

Borges-Andrade, Cameschi e Xavier (1990) e Borges-Andrade (1994) definiram modelos de investigações situando o comprometimento como variável dependente e 59 indicadores de papéis, características pessoais, grupo de trabalho, estrutura organizacional e ambiente externo como variáveis independentes. Investigaram as variáveis relacionadas ao comprometimento nos perfis meio e fim da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária). Os autores apontaram um distanciamento entre os segmentos meio e fim das organizações e, conseqüentemente, a necessidade de se comparar os antecedentes de comprometimento nesses segmentos em instituições públicas como a Embrapa.
Eles apontaram as seguintes diferenças entre meio e fim, no que se refere ao conjunto de preditores de comprometimento:

  • ponto de vista organizacional — conjunto mais intrincado nos segmentosfim, pois além de se relacionar com aspectos motivacionais e de carreira, outras variáveis são bastante importantes (relacionamento no grupo, sistema de retribuição de benefícios psicossociais entre organização e empregado e o grau de investimento pessoal feito por esse indivíduo na empresa);
  • ponto de vista ocupacional — apresentaram-se como preditores as variáveis pessoais, de papel organizacional e de percepção de ambiente externo. Características pessoais e de papéis organizacionais não foram fortes preditores no segmento-fim.

Em ambos os segmentos, três variáveis são preditoras muito poderosas: sistema de promoções justo, oportunidades de desenvolvimento ocupacional e statusexterno da instituição. São completamente distintas as variáveis de percepção de ambiente externo significativamente correlacionadas com comprometimento nos dois segmentos. Entre o pessoal de apoio à pesquisa (ocupação meio), a percepção da existência de alternativas de emprego apareceu negativamente correlacionada com comprometimento. No segmento-fim, há correlações positivas com preferências por organizações alternativas que ofereçam estabilidade e gozem de bom conceito.
(Borges-Andrade, Cameschi e Xavier, 1990:56)

Segundo Borges-Andrade (1994), algumas variáveis significativas unem os segmentos meio e fim: justiça no sistema de promoções e oportunidades de desenvolvimento ocupacional. Outros aspectos moderadamente correlacionados foram: dificuldade de ingresso na empresa, status externo da mesma, satisfação com o relacionamento com colegas e interesse pelas atividades realizadas. Além disso, os principais antecedentes de comprometimento nos estudos brasileiros fortalecem as explicações que enfatizam as trocas indivíduoorganização, parecendo ser o comprometimento uma resposta do indivíduo a organizações que fornecem suporte para o alcance dos objetivos de crescimento e desenvolvimento pessoal e profissional, em um contexto de eqüidade no tratamento de seus recursos humanos. O autor conclui seu artigo fazendo algumas ressalvas, entre elas a de que há necessidade de ampliar a variedade de tipos de organizações públicas participantes do estudo, o que foi feito com a pesquisa ora realizada.

Quando não se separa a organização em meio e fim, o autor aponta o predomínio de variáveis organizacionais, ressaltando a existência de duas variáveis preditoras significativas: desenvolvimento ocupacional na instituição e imagem externa da organização. Todavia, a separação em segmentos meio e fim produz modelos preditivos distintos, e nos segmentos-fim há duas similaridades: status da organização e experiência gerencial anterior estão correlacionadas com comprometimento.

Bastos (1994:74), lidando também com a perspectiva afetiva do comprometimento organizacional, buscou “identificar fatores que expliquem níveis diferenciados de comprometimento organizacional entre trabalhadores de distintos grupos ocupacionais e entre os que atuam nos segmentos público e privado da administração”. Na pesquisa foi comparado o comprometimento nos setores público e privado e analisados os determinantes de comprometimento organizacional em distintos grupos ocupacionais.

A maior parte da variabilidade de comprometimento foi explicada pelo conjunto de variáveis organizacionais (política de promoção explica 32,9% da variância; políticas organizacionais de treinamento, 3,7%; remuneração, 3,6%), seguida de características do trabalho executado (escopo do trabalho, 7,3% da variância) e, seqüencialmente, de variáveis funcionais/carreira do trabalhador (estágio de carreira, ocupação) e de variáveis pessoais (centralidade do trabalho na vida, 1,5% da variância).

Ao analisar os determinantes de comprometimento nos setores público e privado, Bastos (1994) identificou que o modelo explicava 47,8% da variância de comprometimento nas empresas públicas, tendo como principais preditores: política de promoção (26,7% da variância), nível em que as expectativas que tinha ao ingressar na organização foram atendidas, idade do primeiro emprego e centralidade do trabalho. Já nos órgãos da administração pública direta, o modelo explica 67% da variabilidade, apresentando como principais preditores: avaliação da política de treinamento (49,3% da variância), promoção, coordenação dos trabalhos intra e interequipes. Apenas os resultados da pesquisa na administração pública direta e indireta foram aqui apresentados em virtude de sua importância no escopo deste artigo.

Goldstein e Gilliam (1990) acreditam que a maioria das empresas onde os homens trabalharão no futuro estará envolvida com prestação de serviços. LaPalombara (1963) já enfatizara a necessidade de estudo no setor público pelo fato de ele influenciar quaisquer tipos de transformações no desenvolvimento social, econômico ou político de um país. Levando em conta tais pers pectivas, este artigo foi realizado com base em estudo em instituições públicas cuja missão fundamental deveria ser a prestação de serviços, especificamente nas áreas que lidam diretamente com o público.

Este artigo amplia a investigação brasileira de comprometimento organizacional afetivo entre servidores públicos, mas numa direção distinta dos estudos já citados aqui. Assim, ao invés de incorporar um número amplo de variáveis num modelo preditivo, decidiu-se priorizar a questão da congruência entre as missões organizacionais (real e percebida) e das diferenças nos níveis de comprometimento entre servidores da saúde, educação e segurança, posto que as mesmas se configuram como direito do cidadão e obrigação do Estado.

Desde sua primeira definição, o conceito de comprometimento organizacional afetivo esteve vinculado à idéia de uma missão (que integraria objetivos e valores) da organização com a qual o indivíduo se identificaria. Essa identificação, no entanto, passa necessariamente pela existência de uma missão claramente definida e que seja conhecida pelos seus membros. Contudo, missões podem estar especificadas, mas serem percebidas de outra forma pelos indivíduos. Não foram encontrados, na literatura existente, estudos de comprometimento organizacional que explorasse tal questão.



Artigo gentilmente cedido pela Revista de Administração Pública - RAP da Fundação Getúlio Vargas - FGV.
Publicado originalmente em: Rev. Adm. Pública v.42 n.2 Rio de Janeiro mar./abr. 2008, pp. 253-273.


[1] Mestre e doutora em psicologia pela Universidade de Brasília (UnB) na área de psicologia organizacional e do trabalho. Professora adjunta I da Universidade Federal de Juiz de Fora, Departamento de Psicologia. Endereço: Rua Barão de Cataguases, 95, ap. 201, Centro — CEP 36015-370, Juiz de Fora, MG, Brasil.

[2] Mestre e doutor em sistemas instrucionais pela Florida State University, Tallahassee, EUA e pós-doutor pela International Food Policy Research Institute, I.F.P.R.I., Estados Unidos, pela University of Sheffield, Sheffield, Grã-Bretanha e pela Rijksuniversiteit Gröningen, RUG, Holanda.
Professor titular da Universidade de Brasília, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Social e do Trabalho. Endereço: Universidade de Brasília, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Social e do Trabalho. Campus Darcy Ribeiro, ICC/Ala Sul Asa Norte — CEP 70910-900, Brasília, DF, Brasil.

[3] Neste artigo, as palavras organizações e instituições são utilizadas como sinônimos. Todavia, ressaltamos que, numa dimensão sociológica, instituição tem a função de promover valores ou estabilidade social, coesão e integração, ao passo que a organização refere-se a um instrumento de trabalho racional concebido para a mobilização e a coordenação de esforços no cumprimento de propósito específico. Basicamente, o processo de institucionalização de uma organização implicaria infundir valores, além das exigências técnicas da tarefa. Assim, de acordo com Souza (1996) “uma organização, ao institucionalizar-se, adquire sentido de função social, passa a ser aceita pela sociedade, estabelece um sistema de relações a ser seguido, torna-se influente em seu contexto”.

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