Dulce Pires Flauzino[1]
Jairo Eduardo
Borges-Andrade[2]
Sumário
1. Introdução;
2. Método;
3. Resultados e discussão;
4. Conclusão.
RESUMO
O comprometer-se com a
organização envolve alguma atividade do indivíduo no sentido de identificar-se
com ela e desejar manter-se como seu membro, a fim de satisfazer seus
interesses e facilitar o alcance das missões organizacionais. Adotando a
concepção de comprometimento afetivo de Mowday, Porter e Steers (1979), que
enfatiza a natureza do processo de identificação do indivíduo com os objetivos
e valores da organização, e a escala reduzida proposta por Bastos (1994), este
artigo analisa o comprometimento organizacional de servidores públicos ligados
à atividade-fim em saúde, educação e segurança. Os resultados apontam que o
instrumento modificado permite identificar o comprometimento dos servidores e
que este está vinculado à missão organizacional percebida e não à missão real.
Na amostra estudada, altos níveis de comprometimento foram encontrados entre
servidores da área de segurança, quando comparada às áreas de saúde e educação.
3. Resultados e discussão
A análise quantitativa de dados foi
iniciada com a codificação das respostas ao instrumento e à questão aberta
contida no instrumento geral de coleta de dados. A seguir, ocorreu a preparação
do banco de dados (SPSS for Windows, versão 8.0).
Uma análise preliminar dos dados
foi realizada para verificar o atendimento aos pressupostos assumidos pela
análise fatorial. Inicialmente, foram corrigidos erros de digitação e
verificou-se se as médias e os desvios-padrão possuíam valores plausíveis e se
os coeficientes de variação estavam bem acima de 0,0001, o que garantiria
pequena probabilidade de erros de arredondamento influenciarem os cálculos.
O percentual máximo de ocorrência
de dados ausentes por item foi 3,59%, e o percentual médio de 1,34%. Tais
percentuais levaram à decisão de substituir os valores ausentes pela média.
Todavia, a transformação utilizada para aproximar essa variável da normalidade
não resultou em mudanças significativas que justificassem seu uso.
Na pesquisa dos valores
discrepantes, por intermédio da distância Mahalanobis em p < 0,001 (gl = 73,
χ² = 112,317), foram identificados 10
casos extremos multivariados, sendo cinco deles também valores discrepantes
univariados. Os instrumentos dos 10 respondentes foram eliminados da amostra
por apresentarem padrões estereotipados de respostas. Todos eles deram
respostas extremadas (1 ou 7 e 0 ou 6, dependendo da escala) ao instrumento.
Quanto ao tamanho da amostra, a
razão de casos por variável foi de 102,22, o montante de 902 casos válidos,
tendo sido respeitada a proporção mínima de sujeitos de cada instituição
participante. Assim, o tamanho da amostra foi adequado para a realização de
procedimentos estatísticos a serem utilizados.
A inspeção da linearidade e da
homocedasticidade da amostra foi feita por meio das distribuições residuais e
dos gráficos de dispersão bivariados, verificando-se a sua existência dentro
dos limites adequados para a realização da análise fatorial.
Os indicadores da fatorabilidade
da matriz R, usando a opção de extração Maximum Likelihood, foram os seguintes:
- a matriz correlacional possuía 69,44% de correlações acima de 0,30 (em valor absoluto);
- a medida de adequação amostral Kaiser-Meyer-Olkin (KMO) de 0,89 considera a matriz “meritória” (mas bem próximo de “maravilhosa”) para ser fatorada, como indicado pelos criadores da medida;
- o alto valor encontrado no Teste de Esfericidade de Bartlett (2.952,30) aliado à baixa significância (zero) indica que a matriz não é identidade e, portanto, é fatorável;
- o determinante muito próximo de zero (0,033) é indicativo de que a matriz pode ter apenas um fator ou comportar fatores de segunda ou mais ordens;
- as medidas de adequação amostral MSA variaram de 0,77 a 0,93 — uma se encontrava na faixa de 0,75 a 0,80, quatro na de 0,85 a 0,90 e quatro na de 0,90 a 0,95, o que também indica fatorabilidade da matriz.
Portanto, a maioria dos
indicadores apontou que a matriz correlacional dos dados amostrais é adequada
para ser submetida à análise fatorial. Do mesmo cálculo utilizando-se a opção
de extração anterior (Maximum Likelihood) foram obtidas as comunalidades dos
itens, que apontaram a não-colinearidade e não-singularidade entre as
variáveis. Dois dos nove itens (eu realmente me interesso pelo destino da
organização onde trabalho e eu sinto pouca lealdade para com a organização onde
trabalho) apresentaram comunalidades inferiores a 0,30, e foram retirados da
análise.
A estimativa da quantidade de
fatores subjacentes à matriz foi realizada por meio da análise dos componentes
principais (PCA — Principal Components Analysis). Juntamente com os critérios
do eigenvalue = 1 e da distribuição desses valores, a extração apontou a
existência de apenas um fator, ou seja, a escala era unifatorial. Isso também
foi confirmado por Bastos (1994) quando ele utilizou a escala reduzida no
Brasil.
A extração PAF foi realizada com
um único fator para verificar as cargas fatoriais. O cálculo da confiabilidade
do fator foi de α = 0,75, sendo que a retirada do item COMPR8 (decidir
trabalhar nessa organização foi um erro de minha parte) elevou o mesmo para
0,87. Assim, decidiu-se pela exclusão desse item da escala. Os itens que
permaneceram após a análise dos dados estão na tabela 3.
A composição final do instrumento
de medida de comprometimento foi marcada pela permanência dos itens que
possuíam caráter afetivo mais marcante. Assim, itens envolvendo também aspectos
cognitivos (COMPR6 — interesse pelo destino da organização e COMPR8 — decisão
de trabalhar na organização) foram eliminados do instrumento.
Isso pode ser evidenciado quando
se compara os itens COMPR8 (decidir trabalhar nessa organização foi um erro de
minha parte) e COMPR5 (Eu me sinto contente por ter escolhido essa organização
para trabalhar). COMPR5, que permaneceu no instrumento, envolve sentir
contentamento pela escolha (tipicamente afetivo) enquanto COMPR8 envolve tomar
decisão (possui aspectos afetivos e cognitivos). Julgar uma decisão tomada
envolve tentar minimizar as dissonâncias cognitivas com relação a ela e, muitas
vezes, isso é feito ou enviesando fatos ou desconsiderando fatos e informações
que trabalham negativamente com a alternativa escolhida.
COMPR6 (eu realmente me interesso
pelo destino da organização onde trabalho) envolve aspectos afetivos (gostar da
organização, sentimento de querer preservá-la e de prestar bons serviços à
população) e cognitivo-calculativo (caso a organização se desintegre, ele
sofrerá perdas financeiras, ficará desempregado e a população não terá mais
acesso ao serviço gratuito que é obrigação do Estado).
Já o item COMPR9 (eu sinto pouca
lealdade para com a organização onde trabalho) possui conseqüências
inequívocas: para ser leal com a organização, deve haver retidão para com ela.
Mas, a lealdade dos servidores públicos das três áreas estudadas possui duas
vertentes: ser leal com as decisões e procedimentos estabelecidos pelos
representantes da instituição, mesmo que eles acarretem prejuízos à população;
e ser leal com a população, prestando-lhe serviços adequados na hora certa,
mesmo que para isso sejam violados regras, procedimentos e ordens estabelecidas
pelos dirigentes. Assim, para os executores da atividade-fim das instituições
estudadas, ser leal pode eventualmente até possibilitar o prejuízo daqueles
para os quais ela foi criada. Talvez, por isso, esse item tenha se desagregado
do comprometimento afetivo com a organização. A separação da lealdade nesses
dois aspectos pode ser derivada do contato direto que esses profissionais
possuem com a população.
Portanto, podem existir duas
razões básicas para os itens COMPR6, COMPR8 e COMPR9 terem se desagregado do
instrumento utilizado:
- caráter afetivo esteve associado ao cognitivo nos itens COMPR8 e COMPR6;
- lealdade com a organização poderia implicar prejuízo do alcance de sua missão (COMPR9).
Assim, percebe-se que o
comprometimento dos servidores públicos, executores da atividade-fim, aqui
mensurados é caracteristicamente de natureza afetiva.
Ao analisar o comprometimento
organizacional afetivo nos grupos 1(“missão organizacional percebida” coincidente
com a “missão real”) e 2 (“missão organizacional percebida” não coincidente com
a “missão real”), nota-se a não-existência de diferenças significativas nas
médias dos dois grupos, não havendo discrepâncias de comprometimento nos grupos
de respondentes em que existem consistências e inconsistências entre missões
reais e missões percebidas (vide tabela 4). Assim, o comprometimento afetivo
com a organização parece ser independente da percepção da “missão real” da
instituição pelos indivíduos. O comprometimento organizacional, portanto,
poderia estar unicamente baseado na crença a respeito da missão e não naquela
que efetivamente está formulada. Evidentemente, uma explicação alternativa para
esses resultados poderia ser a existência de problemas na análise qualitativa
dos dados referentes às missões real e percebida.
Comparando as organizações de
saúde, educação e segurança
A tabela 5 apresenta as médias,
os desvios-padrão, os erros-padrão e os valores de F relativos ao
comprometimento organizacional afetivo nas três instituições. Esses dados foram
obtidos por meio da realização da Anova (oneway).
Foi constatada diferença
significativa entre as médias das três instituições (p=0,0001) no que se refere
ao comprometimento organizacional afetivo. Por meio do Teste de Tuckey,
verificou-se que a média da instituição de segurança é significativamente maior do que as das
outras instituições (p=0,0001), não existindo diferenças significativas entre
as médias das instituições de educação e saúde. Logo, existiria maior
comprometimento organizacional afetivo na instituição de segurança do que nas
demais.
Na análise do comprometimento
organizacional afetivo, observou-se leve
concordância quanto à percepção de que os respondentes se comprometem
afetivamente com a organização à qual pertencem (tabela 5). Mas, quando se
analisa as instituições separadamente, constata-se que a média da instituição
de segurança é bem maior que as das instituições de educação e saúde, e as
médias destas não diferem significativamente entre si. Isso pode ser devido ao
exercício das atividades do corpo de bombeiros estar intrinsecamente
relacionado ao cumprimento da missão da corporação. Ou seja, apesar do
exercício das atividades obedecer uma estrutura hierárquica fortemente
estabelecida, há também um relacionamento altamente complexo entre as diversas
especializações no grupo dos bombeiros, pois a falta de integração dos mesmos
no trabalho colocaria em risco, de imediato, não só a vida da população, mas
também as suas próprias.
Além disso, o maior nível de
comprometimento da instituição de segurança pode ter sido devido à menor
escolaridade dos bombeiros executores da atividade-fim (geralmente, 2º grau
completo) em relação às instituições de saúde e educação. Nas últimas, há um
predomínio de profissionais de nível superior. A pesquisa de Bastos (1994),
realizada sobre o comprometimento dos empregados nos âmbitos público e privado,
aponta um menor nível de comprometimento dos profissionais de nível superior
com a organização quando eles trabalham em instituições públicas, dado
consistente com os aqui encontrados.
Analisando-se uma pesquisa mais
ampla (Flauzino, 1999), identificouse um padrão cultural comum do serviço
público da área-fim. Contudo, alguns indicadores apontaram a existência de subculturas
nas instituições pesquisadas, incluindo-se aqui o comprometimento
organizacional afetivo. No estudo dessa variável, notou-se que os servidores
das três instituições o percebem como existente. Entretanto, há uma percepção
diferenciada quando se considera instituição militar e não-militar (na
primeira, há maior percepção da variável).
O elevado nível de
comprometimento organizacional afetivo dos servidores da instituição de
segurança pode ser devido, ainda, ao comprometimento que os mesmos têm com o
caráter ideológico da instituição e não com a mesma em sua integralidade.
Analisando-se a maior freqüência
modal das respostas dos sujeitos da amostra total verifica-se que há um
comprometimento moderado. Todavia, a análise de escores modais por item aponta
uma discrepância no item da organização ser a melhor de todas para se trabalhar
(COMPR7). Assim, apesar de existir comprometimento afetivo com a organização,
ela não é percebida por 43,5% dos respondentes como a melhor alternativa de
local de trabalho em contraposição aos que a consideram como tal (32%).
O comprometimento organizacional
afetivo na instituição de saúde se diferenciou do encontrado na instituição de
segurança, embora isso possa ter ocorrido em função do nível de escolaridade. O
idealismo de auxílio à população carente e os benefícios oferecidos pela
instituição podem fazer com que os servidores permaneçam nessa organização.
Contudo, o fato de não perceberem a instituição como a melhor para se trabalhar
leva os profissionais de saúde a duplicarem suas cargas de trabalho em outras
organizações, o que pode levar a maiores riscos de desgaste desses
profissionais e a aumento dos riscos de transmissões de infecções ocasionados
pelo trânsito entre diferentes instituições hospitalares.
Artigo gentilmente cedido pela Revista de Administração Pública - RAP da Fundação Getúlio Vargas - FGV.
Publicado originalmente em: Rev. Adm. Pública v.42 n.2 Rio de Janeiro mar./abr. 2008, pp. 253-273.
[1]
Mestre e doutora em psicologia
pela Universidade de Brasília (UnB) na área de psicologia organizacional e do
trabalho. Professora adjunta I da Universidade Federal de Juiz de Fora,
Departamento de Psicologia. Endereço: Rua Barão de Cataguases, 95, ap. 201,
Centro — CEP 36015-370, Juiz de Fora, MG, Brasil.
[2]
Mestre
e doutor em sistemas instrucionais pela Florida State University, Tallahassee,
EUA e pós-doutor pela International Food Policy Research Institute, I.F.P.R.I.,
Estados Unidos, pela University of Sheffield, Sheffield, Grã-Bretanha e pela
Rijksuniversiteit Gröningen, RUG, Holanda.
Professor titular da Universidade
de Brasília, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Social e do
Trabalho. Endereço: Universidade de Brasília, Instituto de Psicologia,
Departamento de Psicologia Social e do Trabalho. Campus Darcy Ribeiro, ICC/Ala
Sul Asa Norte — CEP 70910-900, Brasília, DF, Brasil.
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