Congresso 2015

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terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Comprometimento de servidores públicos e alcance de missões organizacionais [parte 3 - Resultados e discussão]


Dulce Pires Flauzino[1]
Jairo Eduardo Borges-Andrade[2]
Sumário
2. Método;
3. Resultados e discussão;

RESUMO
O comprometer-se com a organização envolve alguma atividade do indivíduo no sentido de identificar-se com ela e desejar manter-se como seu membro, a fim de satisfazer seus interesses e facilitar o alcance das missões organizacionais. Adotando a concepção de comprometimento afetivo de Mowday, Porter e Steers (1979), que enfatiza a natureza do processo de identificação do indivíduo com os objetivos e valores da organização, e a escala reduzida proposta por Bastos (1994), este artigo analisa o comprometimento organizacional de servidores públicos ligados à atividade-fim em saúde, educação e segurança. Os resultados apontam que o instrumento modificado permite identificar o comprometimento dos servidores e que este está vinculado à missão organizacional percebida e não à missão real. Na amostra estudada, altos níveis de comprometimento foram encontrados entre servidores da área de segurança, quando comparada às áreas de saúde e educação.


3. Resultados e discussão

A análise quantitativa de dados foi iniciada com a codificação das respostas ao instrumento e à questão aberta contida no instrumento geral de coleta de dados. A seguir, ocorreu a preparação do banco de dados (SPSS for Windows, versão 8.0).

Uma análise preliminar dos dados foi realizada para verificar o atendimento aos pressupostos assumidos pela análise fatorial. Inicialmente, foram corrigidos erros de digitação e verificou-se se as médias e os desvios-padrão possuíam valores plausíveis e se os coeficientes de variação estavam bem acima de 0,0001, o que garantiria pequena probabilidade de erros de arredondamento influenciarem os cálculos.
O percentual máximo de ocorrência de dados ausentes por item foi 3,59%, e o percentual médio de 1,34%. Tais percentuais levaram à decisão de substituir os valores ausentes pela média. Todavia, a transformação utilizada para aproximar essa variável da normalidade não resultou em mudanças significativas que justificassem seu uso.

Na pesquisa dos valores discrepantes, por intermédio da distância Mahalanobis em p < 0,001 (gl = 73, χ²  = 112,317), foram identificados 10 casos extremos multivariados, sendo cinco deles também valores discrepantes univariados. Os instrumentos dos 10 respondentes foram eliminados da amostra por apresentarem padrões estereotipados de respostas. Todos eles deram respostas extremadas (1 ou 7 e 0 ou 6, dependendo da escala) ao instrumento.

Quanto ao tamanho da amostra, a razão de casos por variável foi de 102,22, o montante de 902 casos válidos, tendo sido respeitada a proporção mínima de sujeitos de cada instituição participante. Assim, o tamanho da amostra foi adequado para a realização de procedimentos estatísticos a serem utilizados.
A inspeção da linearidade e da homocedasticidade da amostra foi feita por meio das distribuições residuais e dos gráficos de dispersão bivariados, verificando-se a sua existência dentro dos limites adequados para a realização da análise fatorial.

Os indicadores da fatorabilidade da matriz R, usando a opção de extração Maximum Likelihood,  foram os seguintes:
  • a matriz correlacional possuía 69,44% de correlações acima de 0,30 (em valor absoluto);
  • a medida de adequação amostral Kaiser-Meyer-Olkin (KMO) de 0,89 considera a matriz “meritória” (mas bem próximo de “maravilhosa”) para ser fatorada, como indicado pelos criadores da medida;
  • o alto valor encontrado no Teste de Esfericidade de Bartlett (2.952,30) aliado à baixa significância (zero) indica que a matriz não é identidade e, portanto, é fatorável;
  • o determinante muito próximo de zero (0,033) é indicativo de que a matriz pode ter apenas um fator ou comportar fatores de segunda ou mais ordens;
  • as medidas de adequação amostral MSA variaram de 0,77 a 0,93 — uma se encontrava na faixa de 0,75 a 0,80, quatro na de 0,85 a 0,90 e quatro na de 0,90 a 0,95, o que também indica fatorabilidade da matriz.

Portanto, a maioria dos indicadores apontou que a matriz correlacional dos dados amostrais é adequada para ser submetida à análise fatorial. Do mesmo cálculo utilizando-se a opção de extração anterior (Maximum Likelihood) foram obtidas as comunalidades dos itens, que apontaram a não-colinearidade e não-singularidade entre as variáveis. Dois dos nove itens (eu realmente me interesso pelo destino da organização onde trabalho e eu sinto pouca lealdade para com a organização onde trabalho) apresentaram comunalidades inferiores a 0,30, e foram retirados da análise.

A estimativa da quantidade de fatores subjacentes à matriz foi realizada por meio da análise dos componentes principais (PCA — Principal Components Analysis). Juntamente com os critérios do eigenvalue = 1 e da distribuição desses valores, a extração apontou a existência de apenas um fator, ou seja, a escala era unifatorial. Isso também foi confirmado por Bastos (1994) quando ele utilizou a escala reduzida no Brasil.

A extração PAF foi realizada com um único fator para verificar as cargas fatoriais. O cálculo da confiabilidade do fator foi de α = 0,75, sendo que a retirada do item COMPR8 (decidir trabalhar nessa organização foi um erro de minha parte) elevou o mesmo para 0,87. Assim, decidiu-se pela exclusão desse item da escala. Os itens que permaneceram após a análise dos dados estão na tabela 3.



A composição final do instrumento de medida de comprometimento foi marcada pela permanência dos itens que possuíam caráter afetivo mais marcante. Assim, itens envolvendo também aspectos cognitivos (COMPR6 — interesse pelo destino da organização e COMPR8 — decisão de trabalhar na organização) foram eliminados do instrumento.

Isso pode ser evidenciado quando se compara os itens COMPR8 (decidir trabalhar nessa organização foi um erro de minha parte) e COMPR5 (Eu me sinto contente por ter escolhido essa organização para trabalhar). COMPR5, que permaneceu no instrumento, envolve sentir contentamento pela escolha (tipicamente afetivo) enquanto COMPR8 envolve tomar decisão (possui aspectos afetivos e cognitivos). Julgar uma decisão tomada envolve tentar minimizar as dissonâncias cognitivas com relação a ela e, muitas vezes, isso é feito ou enviesando fatos ou desconsiderando fatos e informações que trabalham negativamente com a alternativa escolhida.

COMPR6 (eu realmente me interesso pelo destino da organização onde trabalho) envolve aspectos afetivos (gostar da organização, sentimento de querer preservá-la e de prestar bons serviços à população) e cognitivo-calculativo (caso a organização se desintegre, ele sofrerá perdas financeiras, ficará desempregado e a população não terá mais acesso ao serviço gratuito que é obrigação do Estado).
Já o item COMPR9 (eu sinto pouca lealdade para com a organização onde trabalho) possui conseqüências inequívocas: para ser leal com a organização, deve haver retidão para com ela. Mas, a lealdade dos servidores públicos das três áreas estudadas possui duas vertentes: ser leal com as decisões e procedimentos estabelecidos pelos representantes da instituição, mesmo que eles acarretem prejuízos à população; e ser leal com a população, prestando-lhe serviços adequados na hora certa, mesmo que para isso sejam violados regras, procedimentos e ordens estabelecidas pelos dirigentes. Assim, para os executores da atividade-fim das instituições estudadas, ser leal pode eventualmente até possibilitar o prejuízo daqueles para os quais ela foi criada. Talvez, por isso, esse item tenha se desagregado do comprometimento afetivo com a organização. A separação da lealdade nesses dois aspectos pode ser derivada do contato direto que esses profissionais possuem com a população.

Portanto, podem existir duas razões básicas para os itens COMPR6, COMPR8 e COMPR9 terem se desagregado do instrumento utilizado:

  • caráter afetivo esteve associado ao cognitivo nos itens COMPR8 e COMPR6;
  • lealdade com a organização poderia implicar prejuízo do alcance de sua missão (COMPR9).

Assim, percebe-se que o comprometimento dos servidores públicos, executores da atividade-fim, aqui mensurados é caracteristicamente de natureza afetiva.

Ao analisar o comprometimento organizacional afetivo nos grupos 1(“missão organizacional percebida” coincidente com a “missão real”) e 2 (“missão organizacional percebida” não coincidente com a “missão real”), nota-se a não-existência de diferenças significativas nas médias dos dois grupos, não havendo discrepâncias de comprometimento nos grupos de respondentes em que existem consistências e inconsistências entre missões reais e missões percebidas (vide tabela 4). Assim, o comprometimento afetivo com a organização parece ser independente da percepção da “missão real” da instituição pelos indivíduos. O comprometimento organizacional, portanto, poderia estar unicamente baseado na crença a respeito da missão e não naquela que efetivamente está formulada. Evidentemente, uma explicação alternativa para esses resultados poderia ser a existência de problemas na análise qualitativa dos dados referentes às missões real e percebida.




Comparando as organizações de saúde, educação e segurança

A tabela 5 apresenta as médias, os desvios-padrão, os erros-padrão e os valores de F relativos ao comprometimento organizacional afetivo nas três instituições. Esses dados foram obtidos por meio da realização da Anova (oneway).



Foi constatada diferença significativa entre as médias das três instituições (p=0,0001) no que se refere ao comprometimento organizacional afetivo. Por meio do Teste de Tuckey, verificou-se que a média da instituição de segurança  é significativamente maior do que as das outras instituições (p=0,0001), não existindo diferenças significativas entre as médias das instituições de educação e saúde. Logo, existiria maior comprometimento organizacional afetivo na instituição de segurança do que nas demais.

Na análise do comprometimento organizacional afetivo,  observou-se leve concordância quanto à percepção de que os respondentes se comprometem afetivamente com a organização à qual pertencem (tabela 5). Mas, quando se analisa as instituições separadamente, constata-se que a média da instituição de segurança é bem maior que as das instituições de educação e saúde, e as médias destas não diferem significativamente entre si. Isso pode ser devido ao exercício das atividades do corpo de bombeiros estar intrinsecamente relacionado ao cumprimento da missão da corporação. Ou seja, apesar do exercício das atividades obedecer uma estrutura hierárquica fortemente estabelecida, há também um relacionamento altamente complexo entre as diversas especializações no grupo dos bombeiros, pois a falta de integração dos mesmos no trabalho colocaria em risco, de imediato, não só a vida da população, mas também as suas próprias.

Além disso, o maior nível de comprometimento da instituição de segurança pode ter sido devido à menor escolaridade dos bombeiros executores da atividade-fim (geralmente, 2º grau completo) em relação às instituições de saúde e educação. Nas últimas, há um predomínio de profissionais de nível superior. A pesquisa de Bastos (1994), realizada sobre o comprometimento dos empregados nos âmbitos público e privado, aponta um menor nível de comprometimento dos profissionais de nível superior com a organização quando eles trabalham em instituições públicas, dado consistente com os aqui encontrados.

Analisando-se uma pesquisa mais ampla (Flauzino, 1999), identificouse um padrão cultural comum do serviço público da área-fim. Contudo, alguns indicadores apontaram a existência de subculturas nas instituições pesquisadas, incluindo-se aqui o comprometimento organizacional afetivo. No estudo dessa variável, notou-se que os servidores das três instituições o percebem como existente. Entretanto, há uma percepção diferenciada quando se considera instituição militar e não-militar (na primeira, há maior percepção da variável).

O elevado nível de comprometimento organizacional afetivo dos servidores da instituição de segurança pode ser devido, ainda, ao comprometimento que os mesmos têm com o caráter ideológico da instituição e não com a mesma em sua integralidade.

Analisando-se a maior freqüência modal das respostas dos sujeitos da amostra total verifica-se que há um comprometimento moderado. Todavia, a análise de escores modais por item aponta uma discrepância no item da organização ser a melhor de todas para se trabalhar (COMPR7). Assim, apesar de existir comprometimento afetivo com a organização, ela não é percebida por 43,5% dos respondentes como a melhor alternativa de local de trabalho em contraposição aos que a consideram como tal (32%).
O comprometimento organizacional afetivo na instituição de saúde se diferenciou do encontrado na instituição de segurança, embora isso possa ter ocorrido em função do nível de escolaridade. O idealismo de auxílio à população carente e os benefícios oferecidos pela instituição podem fazer com que os servidores permaneçam nessa organização. Contudo, o fato de não perceberem a instituição como a melhor para se trabalhar leva os profissionais de saúde a duplicarem suas cargas de trabalho em outras organizações, o que pode levar a maiores riscos de desgaste desses profissionais e a aumento dos riscos de transmissões de infecções ocasionados pelo trânsito entre diferentes instituições hospitalares.




Artigo gentilmente cedido pela Revista de Administração Pública - RAP da Fundação Getúlio Vargas - FGV.
Publicado originalmente em: Rev. Adm. Pública v.42 n.2 Rio de Janeiro mar./abr. 2008, pp. 253-273.


[1] Mestre e doutora em psicologia pela Universidade de Brasília (UnB) na área de psicologia organizacional e do trabalho. Professora adjunta I da Universidade Federal de Juiz de Fora, Departamento de Psicologia. Endereço: Rua Barão de Cataguases, 95, ap. 201, Centro — CEP 36015-370, Juiz de Fora, MG, Brasil.

[2] Mestre e doutor em sistemas instrucionais pela Florida State University, Tallahassee, EUA e pós-doutor pela International Food Policy Research Institute, I.F.P.R.I., Estados Unidos, pela University of Sheffield, Sheffield, Grã-Bretanha e pela Rijksuniversiteit Gröningen, RUG, Holanda.
Professor titular da Universidade de Brasília, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Social e do Trabalho. Endereço: Universidade de Brasília, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Social e do Trabalho. Campus Darcy Ribeiro, ICC/Ala Sul Asa Norte — CEP 70910-900, Brasília, DF, Brasil.



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